Entenda a tragédia ocorrida no Rio Grande do Sul

Entenda a tragédia ocorrida no Rio Grande do Sul

A tragédia humanitária, ambiental e econômica vivenciada pelos gaúchos, incidindo sobre seus animais domésticos, habitações, infraestrutura, indústrias, comércios, pecuária e plantações – e que se estende à solidariedade demonstrada em todo o país – tem suas causas analisadas inclusive, indiretamente, em pesquisas produzidas na Amazônia. Com 2,3 milhões de brasileiros afetados, 540 mil desalojados, 80 mil desabrigados, centenas de mortos e desaparecidos, em 417 municípios, o Rio Grande do Sul precisará de muitos esforços para recuperar-se e para planejar seu futuro. Uma garra que os gaúchos certamente continuarão demonstrando para superar uma série de adversidades atribuídas à natureza, mas também às ações humanas, como afirmam a seguir os pesquisadores entrevistados, sob o ponto de vista da Engenharia.

Em nota técnica, o Profágua UFRGS (Mestrado Profissional em Gestão e Regulação de Recursos Hídricos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul), com a participação de professores do IPH-UFRGS, ressalta a valorização da pesquisa hidrológica e hidráulica por meio do Sistema de Gerenciamento de Recursos Hídricos do Estado e evidencia que falhas na manutenção dos “Diques Mauá” contribuíram para a tragédia em Porto Alegre. Afinal, os eventos extremos já são sentidos pelo Estado há alguns anos, embora “nossa engenharia não esteja familiarizada ainda com essas oscilações de longo termo, e por isso, são ignoradas”, conforme reflete a nota técnica a respeito das séries hidrométricas de longo período. A conclusão do IPH já havia sido pronunciada diante das cheias de 2023, apontando “para aumento na magnitude e na frequência de cheias no estado, considerando projeções de mudanças climáticas”.

Além de descreverem as possíveis causas, como as chamadas mudanças globais, os entrevistados apontam a seguir algumas possíveis linhas de ação, entre diversas propostas que certamente ainda serão apresentadas aos moradores do Estado onde há menos de um ano o Sistema Confea/Crea promovia sua 78ª Semana Oficial da Engenharia e da Agronomia (Soea). Portanto, as entrevistas com esses cinco professores de Engenharia representam uma parcela do pensamento acadêmico brasileiro atual e se somam a outros posicionamentos já coligidos e a outros tantos que o Sistema ainda deverá reunir para contribuir com a reversão dos impactos imediatos e mediatos e ainda com a prevenção ainda possível a um dos maiores desafios da engenharia brasileira no século XXI: os eventos climáticos extremos.

Professor de Hidrologia do Instituto de Pesquisas Hidráulicas IPH/UFRGS, o engenheiro civil André Silveira é doutor em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental. No mestrado, sua dissertação versou sobre a simulação hidrodinâmica do Lago Guaíba. Tem experiência profissional e acadêmica em hidrologia urbana (águas urbanas) e hidrologia geral. Além do IPH, atua no Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional (Propur/UFGS), orientando dissertações e teses sobre temas como Trama Verde-Azul e Infraestrutura Verde. Além de pesquisas pelo IPH com recursos federais sobre drenagem urbana, atuou em planos de drenagem urbana para municípios como Porto Alegre e São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, e Tubarão e Caçador, em Santa Catarina. Em novembro de 2023, deu entrevista sobre o sistema de contenção de cheias de Porto Alegre e participou de debate sobre o Muro da Mauá.

O engenheiro sanitarista e ambiental Carlos Eduardo Aguiar é graduado pela Universidade Federal do Pará – UFPA (2013) e tem mestrado (2016) e doutorado (2021) em Engenharia Civil (Área: Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental) pela UFPA. Atualmente, é professor adjunto da UFPA, no Campus Universitário de Tucuruí (CAMTUC), atuando na Faculdade de Engenharia Sanitária e Ambiental (FAESA) e como docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Barragem e Gestão Ambiental (PEBGA). Na área científica, trabalha com produções e projetos voltados para o Gerenciamento de Riscos Climáticos, Desenvolvimento Regional Sustentável e Economia Ambiental. Possui experiência profissional na área de saneamento e meio ambiente, tendo colaborado com empresas responsáveis por elaborar e fiscalizar importantes projetos por todo o Estado do Pará.

Especialista em Irrigação pela Universidade Federal de Santa Maria-RS (1989), mestre em Recursos Hídricos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul/IPH-UFRGS (1994) e PHD em Engenharia Ambiental pela Universidade de Cornell/EUA (2002), o engenheiro civil Lafayette Dantas da Luz é professor Titular do Departamento de Engenharia Ambiental da Universidade Federal da Bahia, onde se formou em 1985. Foi editor da Revista Eletrônica de Gestão de Tecnologias Ambientais – Gesta entre 2011 e julho/2022. Lafayette pesquisa as áreas de ecohidrologia, recuperação de rios, vazões ambientais e ecológicas, manejo e drenagem pluvial urbana e análise de sistemas de recursos hídricos. Atual coordenador do Programa de Pós Graduação em Meio Ambiente, Águas e Saneamento (MAASA) da UFBA.

Engenheiro Civil pela Universidade de Brasília (1975) com mestrado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1984) e PHd pela Universidade de Londres (1990), Sérgio Koide é professor do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da Universidade de Brasília (UnB). Suas áreas de interesse envolvem Recursos Hídricos, Qualidade do Ar, das Águas e do Solo, Hidrologia, Engenharia Hidráulica, Águas Subterrâneas e Poços Profundos e Controle de Poluição.

Formada pela UFRGS em 1989, a engenheira civil Simone Rosa da Silva é mestre em Engenharia Civil pelo Instituo de Pesquisas Hidráulicas (IPH/UFRGS-1993), doutora em Engenharia Civil com ênfase em Recursos Hídricos e Tecnologia Ambiental pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE-2006) e Livre Docente pela Universidade de Pernambuco (UPE-2016). Atua na área de recursos hídricos em Pernambuco desde 1992, tendo iniciado como pesquisadora do Instituto de Pesquisas Agronômicas – IPA e ocupado diversos cargos no Governo do estado, incluindo o de Secretária Executiva de Recursos Hídricos de Pernambuco (2019-2022). Ingresso como docente na UPE em 2009 onde pé professora associada, vice coordenadora do programa de Pós-Graduação em Engenharia civil e líder do grupo de pesquisa AquaPOLI.

Confea – Qual a sua opinião técnica sobre esse drama enfrentado pelo Rio Grande do Sul em relação às mudanças globais e as condições hidrológicas do estado?

Eng. André Silveira – A cheia que está acontecendo no Rio Grande do Sul, atingindo a grande maioria de seus municípios, provocando inundações e deslizamentos é, sem dúvida, a maior da história. O desastre que está acontecendo talvez seja o maior já acontecido nas Américas (superando o do Katrina). Apesar de ter acontecido uma grande cheia em 1941, que parecia inatingível, esta de 2024 é maior em pico e volume. E houve inéditos dois eventos num ano só em 2023, menores que este de 2024, provocando situações importantes de inundação. Sem dúvida há uma componente causal devido às mudanças climáticas. Estamos num momento de repensar como dimensionamos obras hidráulicas porque as condições hidrológicas do estado parecem estar mudando, conforme, infelizmente o IPCC já havia previsto.

Eng. Carlos Eduardo Aguiar – Porto Alegre já tinha sofrido com uma grande enchente lá nos anos 1940, inclusive até essa própria enchente que intensificou as construções de diques, sistemas de bombeamento, principalmente naquelas partes mais baixas da cidade. O próprio nível do Guaíba, que na época foi 4,6 metros, mais ou menos 4,7 (metros), comparado ao que subiu agora, foi 5,3 (metros). E por que agora foi, acredito eu, muito mais impactante? Porque naquela época, não só Porto Alegre, como o próprio Rio Grande do Sul, não era tão urbanizado, impermeabilizado. Então, com chuvas mais intensas, prolongadas, junto com a grande enchente de rios, a parte da impermeabilização, ruas mais asfaltadas, pouca área verde, tudo fez com que intensifique, piore ainda mais a situação. É uma coisa assim que que a gente consegue tentar prever, mas não existe uma fórmula de bolo para isso. Foi uma chuva realmente muito mais alta do que estavam realmente esperando. Claro que, não só o estado, a capital, Porto Alegre, também foi deficitária com relação a estruturas para tentar evitar. Teve também esse problema. Porém, mesmo com estruturas, ia ter um certo impacto do mesmo jeito, porém, poderia ter sido bem menos pior do que está sendo agora. Principalmente a região metropolitana sofreu bastante porque os sistemas de diques e os demais sistemas apresentaram falhas. Como eu falei, o Estado falhou em realizar as manutenções preventivas desses dispositivos, realizar até mesmo a atualização desses dispositivos, verificar se estavam defasados ou não, o que poderia ter sido muito benéfico para a população, poderia ter evitado muito transtorno, mas, infelizmente, isso é um caso que não é apenas do Rio Grande do Sul, isso acontece pelo Brasil todo. A crise climática é um assunto que ainda é muito pouco valorizado. Eu acredito que só comece a ser valorizado nessas situações. Infelizmente, é como um ser humano que só procura tratamento quando aparecem os sintomas, quando a gente deve cuidar do problema bem antes de os sintomas aparecerem e até mesmo piorarem. Mas isso é algo comum pelo Basil, chega a ser até mesmo cultural, a questão de a gente não dar valor para as crises climáticas.

Eng. Lafayette Dantas – O drama ora vivido pelo estado do Rio Grande do Sul resulta de múltiplos fatores: climáticos, primeiramente, mas também o relevo e a hidrografia, a ocupação e as transformações no uso dos solos, o modo de urbanização, falhas das administrações públicas locais, como principais. A região em que se insere o estado se caracteriza naturalmente por grandes instabilidades atmosféricas e variações bruscas em curto prazo. As chuvas intensas e/ou prolongadas são historicamente comuns na região. Alertas baseados no esforço do IPCC há muito apontam para um aumento dos extremos climáticos na região, com chances tanto de chuvas mais intensas como de secas mais prolongadas. Tais alertas têm sido minimizados ou ignorados por parte da sociedade, e negligenciados quase que totalmente pelos gestores/administradores públicos. As aras exceções são ainda tímidas diante do que seria mais prudente. Os índices pluviométricos ocorridos situam-se na condição de extremos, num patamar jamais registrado. A sua magnitude e áreas de incidência combinaram-se com as características das bacias hidrográficas e sua rede de drenagem natural da região atingida pelas chuvas, de uma forma que potencializou as enchentes dos rios, extravasando totalmente seus leitos maiores. Isto tudo agravou o que se denomina “ameaça” e que integra o “risco”. Estruturas colapsaram ou podem ter exercido efeito represador, provavelmente por terem sido dimensionadas para condições não tão extremas como a dos eventos ocorridos. As ocupações urbanas normalmente, e infelizmente, avançam sobre áreas em que os rios naturalmente inundariam, com isso aumentando a “exposição” da população à inundação. Agrava-se esse problema quando moradias e a população expostas ao evento-ameaça apresentam “vulnerabilidade”, são precárias e pobres, e não há recursos e alternativas para escapar do problema. Em linhas gerais, este é o quadro que, tecnicamente, descreve a situação ainda sendo vivida no RS.

Eng. Sérgio Koide – De maneira geral, toda a área estado do Rio Grande do Sul é muito baixa, temos regiões muito planas e então eles são um pouco mais sujeitos a esse tipo de catástrofe. Você veja que, apesar de ser muito grande, apesar de que a chuva foi realmente excepcional, não há registro de nada parecido lá no Sul, mas você veja que isso perdura por um período longo porque são terras muito planas. Inclusive, em algumas regiões, até a forma de ocupação era mais ou menos antiga, ou seja, todo mundo ia para a beira dos rios, muitos deles ocupam a própria calha secundária do rio, então esse pessoal todo fica na beira do rio. Você veja que é o próprio governador tem falado muito o seguinte: vamos reconstruir, mas longe do rio. Eles têm tido essa visão porque não adianta eu ir lá na beira do rio novamente. Esse ano hidrológico, em 2023, foram duas vezes. E 2021 também houve alagamentos. Essa região do Taquari tem tido esses problemas todos. Mas veja que, historicamente, isso vem se agravando. Isso está muito claro hoje pra muita gente.  Eu me lembro que como professor de Hidrologia há muito tempo, lá na década de 90, quando a gente começou, essa já era tema de debate. Na Rio 92, houve uma discussão muito forte:  ou a gente faz alguma coisa de medo ou a gente vai sofrer consequências com o aquecimento global. Isso foi lá na Rio 92. Então, aquilo foi o grande alerta e, a partir daí, em muitas escolas, pelo menos, nas escolas mais tradicionais que têm um quadro mais atualizado, a gente começou a discutir a questão das mudanças climáticas, a importância de analisar isso. Mas sempre voltada também à necessidade de atuação. Anteriormente sempre houve essas variações de clima né, mas pela primeira vez se falou que era uma mudança antrópica, nós estávamos provocando isso. E isso ficava muito claro principalmente quando você olha a concentração de CO2 na atmosfera. Então, todo mundo começou a se preocupar com isso, mas o que acontece é o seguinte: eu acho que os próprios governos de maneira geral não têm muito interesse em investimentos de longo prazo porque os governos são curtos. Então, você pega um presidente no Brasil e nos Estados Unidos o máximo que você pode passar são dois mandatos. Então, você fala que em oito anos não vai acontecer nada, eu não vou ficar investindo agora para as próximas gerações. Isso é mais ou menos o que acontece, apesar de não se admitir. Então, na Rio-92 se estabelece o protocolo de Kyoto e aí quando chega lá dois anos depois que, o George Bush tira os Estados Unidos. Aí o Clinton volta, chega o Trump e tira de volta. Agora o Biden disse que coloca, mas se o Trump ganhar será que ele vai tirar de novo? Então, tem esses ciclos, que são complicados e aí, então finalmente, nos últimos cinco anos, a natureza de fato começou a cobrar, no mundo inteiro. Na mesma semana que tá acontecendo aqui no Rio Grande do Sul, em Omã caiu uma chuva impressionante. Dubai botou um quase um metro de água nas ruas de Dubai. E tem estudos, basicamente por análise de satélites, que na Arábia tem região que estão começando a criar vegetação onde ele era deserto, do tanto que está chovendo. E aí, nós estamos numa situação é reversível? Talvez seja, talvez não. Mas dá pra amenizar. Pra mim, uma coisa que mostra que o homem é capaz de interferir no processo foi a história do buraco na camada de ozônio. Aí, claramente a gente conseguiu controlar em cima de uma mudança antropogênica que nós revertemos. Então, isso mostra que, se toda a civilização humana conseguisse se botar pra fazer isso, consegue. Então, essas modificações como dizem, cobram um preço muito alto, mas eu acredito que a gente pode melhorar a situação, mas nós não temos tempo para ficar esperando e discutindo. Então, realmente há necessidade de medidas urgentes. Nós não podemos mais dar ouvidos a negacionistas. Por exemplo, nós passamos aí quatro anos dando eco a pessoas pseudocientistas, fazendo tudo o que não devia fazer.

Engª. Simone Rosa – Ocorreram chuvas muito intensas, numa grande extensão de área, atingindo várias bacias hidrográficas que convergem para o Guaíba, o que culminou na catástrofe da Região Metropolitana de POA. Embora tenha sido um evento raro, que superou em intensidade todos os anteriores, o histórico tem mostrado a repetição de eventos críticos na região com maior frequência nos últimos anos.

Confea – Que medidas poderiam ter sido implementadas ou precisam ser implementadas nesse momento?

Eng. André Silveira – Como não há um verdadeiro ordenamento territorial em praticamente todos os municípios do RGS, agora sente-se o efeito de haver ocupação em zonas de passagem de cheias e encostas com risco de deslizamento. Este ordenamento é fundamental num futuro imediato. Naquelas cidades com sistemas de proteção contra inundações que falharam, é preciso diagnosticar logo as causas, prever reparos e melhoramentos. Também descobrir por que algumas pontes caíram e outras não. Pontes são estruturas hidráulicas durante uma inundação. É preciso restabelecer sistemas de monitoramento de níveis de rios e chuvas de forma mais resiliente.

Eng. Carlos Eduardo Aguiar – Antigamente, quando se falava de mudanças climáticas, a gente tinha muito discurso de medidas de mitigação ou de adaptação. Hoje em dia, a gente tem que utilizar as duas. A gente não pode se dar ao luxo mais de utilizar ou uma ou outra. O que poderia ajudar muito é a questão de reflorestar. Margens de rios, principalmente, que sofrem bastante; aumentar os cinturões verdes, áreas verdes na cidade também para aumentar a infiltração no solo e ajudar a reter essa chuva intensa. Não esquecendo também, não só de cidade, mas as margens do rio são super importantes. É importante também não só essa área hidrológica, mas as cidades terem seus próprios sistemas de alerta, medidores, para que os sistemas de defesa, até a Defesa Civil, possam não só elaborar o monitoramento completo, ter um monitoramento de alerta mais robusto, mas poder realizar com muita antecedência toda essa articulação para poder ajudar a população. Muitas vezes o sistema mesmo está defasado e não é culpa da Defesa Civil, às vezes é questão mesmo de orçamento, de terem áreas muito grandes para serem atendidas; retirar também a população que mora em nas áreas de inundações dos próprios rios. Porque é muito comum no Brasil, é cultural, histórico, que a  população menos favorecida more nas áreas mais externas da cidade ou às margens de rios, por serem áreas mais favoráveis, porém mais perigosas com relação a esse risco hidrológico, climático que a gente vem vivendo. É importante também ter planos de evacuação possíveis para determinadas regiões. O Brasil é um país muito grande, cada região tem sua particularidade, cada cidade tem sua particularidade. Planos de educação ambiental são muito importantes para a população, independente da idade. Na parte de educação ambiental, a gente tem que mostrar para a população a importância dessa adequação aos eventos extremos. É importante ter essa noção. A mudança climática, ao mesmo tempo que ela traz muitas coisas, em si, impactantes para a sociedade, ela também é uma boa oportunidade para a gente poder aproximar mais a sociedade e o os indivíduos a verem os seus planos em comum e tentarem solucioná-los. Tem alguns estudos que mostram já isso: em algumas bacias hidrográficas, a própria população já tem essa articulação, independente de iniciativa privada ou estado, para poder se adaptar a condições climáticas. Poder realizar, por exemplo, reflorestamento à margem de rios, já é realizado em algumas vezes pela própria população, por causa justamente dessa noção que a educação ambiental criou nessa população. É muito importante isso.

Eng. Lafayette Dantas – Primeiramente, combater o negacionismo e apoiar-se em evidências científicas para análises. Políticas públicas devem valorizar e se apoiar em indicações de base científica. Políticos devem compreender que prevenção é muito melhor que mitigação ou remediação. A remediação é, em geral, de um custo extremamente mais elevado que a prevenção. Investimentos devem fomentar, desde o monitoramento e coleta de dados, passando por formação de especialistas, capacitação de pessoal em funções diversas e sua incorporação nas instituições do estado, pela estruturação institucional para lidar com os problemas dos riscos e desastres, assim como elaborar planos, programas e ações de prevenção, ações em emergências e mitigação. As cidades devem ser desimpermeabilizadas, devem considerar formas diferentes de urbanização, buscando o convívio com as águas e sua dinâmica, devem adotar medidas estruturais quando necessário, mas valorizar medidas não-estruturais para o manejo e drenagem das águas. Logo, a gestão das cidades deve ser orientada, realmente, para o bem-estar da população e não para a ganância e imediatismo dos interesses corporativos, imobiliários e rentistas. As bacias hidrográficas e de drenagem, sejam urbanas, sejam rurais, devem ter áreas verdes valorizadas, mantidas, recuperadas ou implantadas. O uso dos solos deve ter viés conservacionista, prevenindo a erosão e perdas da fertilidade. Neste sentido, também o modo e as tecnologias para agricultura devem ser repensadas e utilizadas práticas conservacionistas, evitando desmatamentos, monocultura, uso dos solos à exaustão e emprego abusivo de veneno. Com isso, poderíamos começar a esperar uma redução dos riscos de um evento tão extremo causar tantos estragos e perdas.

Eng. Sérgio Koide – Eu acho que a primeira coisa a seguinte: é ver de onde é que é que estão as grandes fontes de gases do efeito estufa. E a gente combater isso. A primeira coisa que a gente sabe é o seguinte: o Brasil é colocado como um dos grandes produtores de gases estufa por um simples motivo: queima de florestas. Então, na verdade, é o desmatamento inicialmente e depois a queima daquela massa de matéria orgânica que depois é derrubada pra criar áreas de plantio e de pastagem. Então, isso realmente é a primeira coisa que tem que realmente ser controlado. Eu acho que a gente precisa pensar melhor aí com um pouco mais de tempo o seguinte: não pode também continuar fazendo a mesma coisa do próprio cerrado. Então, Cerrado, hoje, é a grande área de desmatamento do país, então isso precisa ser controlado, não só na Amazônia. No Cerrado e no Pantanal, também precisa se controlar um pouco mais. Então esse é o primeiro passo. E a outra medida que eu acho que o Brasil nesse aspecto tem corrido bem atrás, é a questão do seguinte: nós temos que reduzir a questão do uso de combustíveis fósseis, substituição de energias. Então, eu acho que o Brasil deu um grande avanço aí na minha opinião. No passado aí, com combustíveis renováveis, melhorou muito na questão do aproveitamento da matéria orgânica, a própria cana e a palhada, tudo isso aí, deixar de queimar e passar realmente a usar isso como mais geradores e também outras fontes de energia que é a questão aí da energia eólica, solar e vão aparecer outras, hidrogênio. E você veja que a própria eólica está mudando, até os tipos de usina. Então tudo isso, a energia solar, estão sendo aperfeiçoadas. Temos que aproveitar porque a energia solar não é só para o painel, talvez para os concentradores, através de espelhos, uma série de coisas que estão sendo pesquisadas no mundo inteiro. Então, eu acho que a gente tá indo. Nós vamos ter que partir também pra energia do mar, maremotriz. Tudo isso são medidas que nós vamos ter para gerar energia e substituir a matriz. Não dá pra substituir de imediato. Na minha opinião a de alguns governos, é errôneo que isso é gasto porque, na verdade, essa substituição também gera emprego, também gera tecnologias novas. Eu acho que isso também é importante, então acho que dá pra conviver bem com essas mudanças.

Engª. Simone Rosa – Especificamente na cidade de Porto Alegre, há um sistema de proteção contra cheias que compreende muros, diques e bombas. Como estes sistemas não são utilizados com frequência, é necessário que haja uma manutenção periódica, de forma a garantir a operacionalidade e funcionalidade de todos os elementos do sistema. De acordo com notícias veiculadas na mídia, o sistema teve falhas em aspectos importantes, como em diversas estações de bombeamento e algumas das comportas existentes nos diques. Provavelmente, não houve a manutenção adequada no sistema, o que precisa ser corrigido. Por outro lado, deve-se reavaliar a localização de estruturas importantes que foram atingidas por esta cheia, tais como Estações de Tratamento de Água e o aeroporto.

Confea – Fale sobre como as suas linhas de pesquisa podem relacionar-se aos eventos climáticos extremos como o enfrentado pelos gaúchos. Qual seria a possibilidade de um evento semelhante ao ocorrer em outras regiões do país, como a cidade onde vive?

Eng. André Silveira – Eu pesquiso, orientando alunos de mestrado e doutorado na UFRGS no tema de Trama Verde-Azul que tem a potencialidade, considerando vegetação e água na paisagem, que tem grande potencial de mitigar efeitos das mudanças climáticas, sobretudo em cidades. O Rio Grande do Sul é um estado sujeito a diversas forças meteorológicas como: frentes frias, ciclones, bloqueios, jatos de nível baixo e alto, complexos convectivos de meso-escala, vórtice ciclônicos de alto nível, baixa do Chaco, El Niño, sem ser exaustivo. Tudo podendo gerar eventos extremos de precipitação com umidade vinda da Amazônia e do Oceano Atlântico. No Brasil, Santa Catarina é o que mais se aproxima do RGS quanto a risco climático referente a inundações e deslizamentos. Mas sabe-se pelo IPCC que vários estados do Sudeste vão receber potencialmente mais chuvas e com maior intensidade, estando expostos a enxurradas e deslizamentos de encostas mais frequentes.

Eng. Carlos Eduardo Aguiar – Os modelos climáticos, que eu estudei na minha tese em si,  já são amplamente utilizados pelo mundo para a projeção da hidrologia global pro futuro. Pelo menos até 2099, nós temos várias projeções que já são realizadas, principalmente para cenários futuros do Painel intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC). E na minha tese, justamente, eu utilizei esses cenários para agregar as mudanças climáticas às variáveis já utilizadas em planejamentos hidrológicos, como a questão de curva de permanência de vazões, que é pra ver como ela iria se comportar, por exemplo, no Rio Amazonas. E, em paralelo, eu também realizei um estudo em curvas de intensidade, duração e frequência que são variáveis utilizadas, que a gente chama na construção de barragens. Elas são a equação de chuva utilizadas para o dimensionamento de barragens de várias obras hidráulicas, justamente para tentar agregar e prever nessas obras hidráulicas como elas terão que ser projetadas para que, no futuro, elas não venham a sofrer tanto com eventos extremos. Já ocorrem estudos como o meu, que foi aconteceu aqui na Amazônia, ao norte do Brasil. Tem um estudo semelhante no Nordeste, mas acredito não ter visto ainda estudos agregando essas mudanças climáticas a variáveis hidrológicas em si, para projetos de engenharia hidráulica, no Sul e Sudeste, o que seria muito importante de realizar. Essas variáveis conseguem mostrar como as mudanças climáticas vão afetar não só a questão da estrutura em si, mas o orçamento e, por exemplo, determinada obra, uma barragem, se construída de tal forma, projetada de tal forma, vai ser um valor. Mas se pegarmos assim, com as precipitações até 2099 são muito mais intensas, em quanto? É isso aqui. Então, isso em uma obra vai agregar tanto no orçamento, provavelmente para mais, pela questão de a obra ser mais resistente, porém, é melhor gastar mais e ter mais segurança no projeto do que depois ter todo esse problema que está acontecendo, toda essa problemática, dor de cabeça, enfim, é melhor evitar do que ter que remediar. O que a gente fala é que a engenharia em si não consegue controlar a natureza. A gente consegue contornar o que a natureza está propondo ali pra gente, mas controlar em si…? Uma hora, a natureza se revolta e a gente fica pra trás.

Eng. Lafayette Dantas – Minha atuação tem sido orientada principalmente para as áreas de conhecimento da Hidrologia e Hidráulica, com a extensão destas áreas para uma abordagem de interrelação com ciclos geológicos, químicos e biológicos, daí a combinação conceitual do termo Ecohidrologia. Assim dito, observe que essas áreas de conhecimento se aplicam ao meio em que vivemos, logo deve considerar as populações, a sociedade e as infraestruturas das quais dependemos (moradia, abastecimento de água e energia, transporte etc). A pesquisa de eventos extremos há muito tempo vem sendo desenvolvida na academia. Publicações a respeito não faltam. Também sobre as possibilidades de agravamento dos mesmos, os quais são decorrências, em boa parte, da ação humana inadequada, seja no mau uso dos solos e na criação de infraestruturas ineficientes, seja pelas (agora mais lembradas) mudanças climáticas. Algumas vezes esses esforços de pesquisa são chamados a subsidiar estudos, planos e ações de gestão. Porém, predomina o desprezo, pelos gestores públicos, dos alertas e recomendações que são propostas pelos pesquisadores. Eventos climáticos e hidrológicos extremos podem ocorrer em qualquer lugar, claro que com especificidades que decorrem das condições locais. Salvador não conta com grandes rios, por exemplo. Até mesmo por isto, tem sido generalizada a prática de canalização e tamponamento dos mesmos. Porém, inundações e alagamentos são recorrentes e transtorna a cidade, mesmo em chuvas dentro da faixa da normalidade. Sendo uma cidade litorânea, o nível do mar é outro elemento de preocupação para a sua condição futura e em casos de eventos extremos. O agravamento de eventos extremos de chuva também é previsto para esta região, com possível redução de totais de chuva acumulados no ano, mas com grandes chances de concentração temporal dos eventos, ou seja, as chuvas podem se tornar mais curtas, porém mais intensas. A possibilidade de catástrofes existe, ainda mais pela intensa eliminação de áreas livres e verdes para exploração/ocupação imobiliária, numa crescente impermeabilização das superfícies. O resultado disso será a intensificação do calor urbano, dos alagamentos, dos deslizamentos de terra em encostas, e colapso iminente de infraestruturas.

Eng. Sérgio Koide – Pois é, o que você vai acontecer é o seguinte: nós temos observado também em Brasília bastantes mudanças no clima. Mas veja que em Brasília nós temos uma vantagem que é estar no topo do Planalto, então a água corre para fora. Então, em termos de alagamentos, veja que todos os alagamentos que a gente tem aqui e alguns são bastante grandes são decorrentes de falhas de engenharia. Então, nós temos aqui em Brasília, lógico, não é nem criticando, mas a engenharia tinha um conhecimento limitado. Brasília foi construída em uma época em que não tinha dados, então os dados que a gente tinha eram de Formosa, Goiânia. Então, a gente tinha alguns dados aqui sobre chuva e tal, mas eram bastante diferentes. Os próprios critérios de projeto mudaram muito. Então, lá no início de Brasília, quando os sistemas de drenagem foram construídos, e Brasília foi praticamente pioneira nisso, uma cidade em que à medida que você foi construindo já foi criando toda a rede de infraestrutura e saneamento básico. Então, os sistemas de drenagem foram instalados em uma cidade que ainda estava sendo construída. Mas só que aí os critérios de projetos eram outros. Nós estamos falando de usar períodos de recorrência, de retorno, de três anos, cinco anos. Então, hoje, nós não trabalhamos com menos de 10 anos, nos grandes sistemas, nas galerias, você usa pelo menos 10 anos de período de retorno. Isso é um lado. Por outro lado, como diz, se você analisar, por exemplo, a questão das curvas de intensidade, duração e frequência de chuvas, nós estamos ainda um pouco defasados. A ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico) está tentando é atualizar isso, ela está realmente fazendo um estudo em nível nacional, mas aqui em Brasília, por exemplo, nós trabalhamos até 2010, com uma equação de chuva feita na década de 1970, parcialmente com dados de Brasília, mas com muitos dados de fora. E o Imet aqui, juntando dados, mas nunca realmente fez nada com isso e aí, quando a Adasa contratou a elaboração do Plano Diretor de Drenagem Urbana (PLDU) de  Brasília, a equação de chuva foi atualizada. Então pegou-se os dados do Imet e se fez uma equação de chuva. Isso em dados até 2008. E estamos usando esses dados até hoje, então nós já temos mais de 15 anos de dados. Será que não mudou a IDF? (NR: curvas Intensidade-duração-frequência são definidas como relações hidrológicas utilizadas em projetos de infraestrutura hídrica e planejamento de bacias hidrográficas. Atualmente, utilizam-se as curvas não-estacionárias para a geração de curvas futuras, adicionalmente às curvas IDF estacionárias). Então, nós já temos os dados acumulados, e esse estudo ainda não foi feito. Por que que não foi feito? Porque de fato a única estação que tem esse tipo de dados, desde aquela época pra trás, é o próprio Imet. Então, não é muito fácil pegar as cidades, lógico, é porque está tudo em papel, ainda é muito daqueles pluviogramas, porque o Imet registra dados em estações automáticas, mas é com frequência horária, com frequência contínua só lá no papel ainda. Agora, logicamente, aqui no próprio DF, a Adasa (Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento do Distrito Federal) tem um sistema em parceria com a UnB, com o Ibram (Instituto Brasília Ambiental) e com a Caesb (Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal), que a gente está pegando chuvas com intervalo de cinco minutos já tem três anos. Então, isso vai permitir a gente ter uma ideia melhor, tanto da distribuição temporal, quanto de espacial dessa chuva. Então, a gente vai ter que equalizar essa equação porque mundialmente o pessoal está vendo que já está chegando aqui. Todos os dados do mundo inteiro estão mostrando o seguinte: que, a cada década, as chuvas têm aumentado na ordem de 10% de intensidade. O Cerrado não está livre disso. E nós temos observados aqui, por exemplo, chuvas muito intensas aqui em Brasília. Aquela chuva que alagou aqui a UnB, no Carnaval, foram 70 milímetros em 40 minutos. 70 milímetros em 40 minutos é muita chuva. Usando aquela equação, a IDF antiga, de lá de 2009, deu um período de retorno de 60 anos. Então, pode ser que seja, o que está mostrando só é que realmente de fato o que está acontecendo com uma certa frequência são chuvas muito intensas, no mundo inteiro. A gente precisa projetar. Veja que quando eu projeto uma obra de drenagem, eu quero que ela funcione bem, pelo menos, nos próximos 30 anos, então, se eu não souber como é que as chuvas podem ser projetadas para daqui a 30 anos, daqui a 10 anos,15 anos, a obra já está obsoleta de novo. Então, tem esse problema, embora a gente consiga, aqui em Brasília, resolver alguns problemas mais facilmente. Outro problema que acontece pouco aqui em Brasília, mas acontece também, é essa ocupação da calha secundária dos rios. Aqui em Brasília, nós temos dois locais muito claros disso aí, que é lá na Fercal e aqui na Bacia do Riacho Fundo, a Vila Cahuy, próximo ao Núclo Bandeirante. O pessoal ocupou a calha secundária do rio. O riacho fundo passa muito encaixado, então corre lá no fundo numa calha bem fechada e aí tem a calha secundária que de um lado tá o Núcleo Bandeirante, e do outro lado, ele vai embora e depois sobe. Então, nessa parte baixa, hoje tá ocupado. E aí, esse é um dos lugares aqui em Brasília em que quando o riacho Fundo bota água para fora, ali alaga. Aí entra a segunda parte que é muito importante que é como nós vamos fazer a ocupação urbana. Aqui em Brasília ainda está se construindo muito novos núcleos urbanos, então, os núcleos urbanos têm que ser resilientes à chuva. Nós temos que fazer núcleos urbanos que não sejam facilmente alagados e mais do que isso que eles não provoquem cheias pra baixo. Então, essas áreas mais sujeitas e alagamento não podem ser ocupadas. Áreas então de grande declividade e instabilidade de taludes também não podem ser ocupadas, e nem pra baixo dessas áreas. Então, por exemplo, nós temos que ter muito cuidado porque nós estamos tendo muita ocupação agora nas bordas da chapada porque elas foram se expandindo, não têm mais pra onde se expandir e aí começa a haver a ocupação irregular até ser regularizado. Nós estamos vendo o problema aí dessa ocupação, por exemplo, lá no Sol Nascente e Pôr-do-Sol que eram áreas de nascentes de rios que foram aterrados e o pessoal ocupou. Então, nessas regiões, é difícil de fazer uma infraestrutura, mesmo porque o próprio terreno não é apropriado, então esse tipo de ocupação tem que ser evitado, a gente tem outras áreas que podem ser ocupadas, não precisa estar ocupando essas áreas de risco.

Engª. Simone Rosa – Recife é uma cidade litorânea e está sujeita a alagamentos, especialmente quando o pico do evento crítico coincide com a maré cheia. Porém, após o pico da cheia, a água torna a drenar para o oceano e não permanece em cotas elevadas por tanto tempo como acontece nesta situação na Região Metropolitana de POA. Na região da Mata Sul de Pernambuco, já tivemos eventos bastante críticos, atingindo vários munícipios e com consequências semelhantes ao que ocorre hoje no RS, embora em menores proporções. Após o evento ocorrido em 2010, foi planejado um sistema de controle de cheias desta região com projeto e execução de várias barragens.

Confea – O país precisa preparar-se melhor para eventos semelhantes? Como?

Eng. André Silveira – Sim, sem dúvida. Ocorreu-me os seguintes aspectos 1) Engenharia : métodos de projeto e construtivos têm que ser revistos, para tornar resistentes a chuvas extremas e cheias as rodovias, as pontes, as estações de bombeamento, plantas de tratamento de água e esgotos, hospitais, pistas de pouso, a drenagem urbana, a rede elétrica, a rede de iluminação, a comunicação, a contenção de encostas; também caberia à engenharia fazer um amplo diagnóstico para reforma e aperfeiçoamento dos sistemas de diques já existentes ou já projetados; a visão deve ser integrada, prevendo onde possível, estruturas redundantes; 2) Ordenamento territorial : fazer um efetivo planejamento urbano e regional, considerando os riscos das cheias; estímulo a técnicas de infraestrutura verde-azul;  estabelecer condições realistas de ocupação de áreas inundáveis, evitar ocupações em áreas definitivamente inapropriadas (zonas de passagem de cheias, ocupações no topo de diques, a jusante de barragens e em encostas sabidamente instáveis, entre outras); nisso tem que haver colaboração do Judiciário para favorecer e não colocar óbices à relocação de pessoas que estão em áreas de risco, em tempo célere. 3) Sistema de Projetos e Gestão Contra Cheias (Governança): depois da extinção do DNOS falta um órgão federal que pense o problema e ajude nos projetos; isto ajuda na prevenção e não deve ser colocado como atribuição da Defesa Civil que atua na emergência. É preciso uma auditoria técnica frequente das infraestruturas, sobretudo daquelas contra cheias. Como uma usina nuclear deve haver uma sala de controle fino anti-sinistros com mais informações e modelos que aqueles que hoje vemos nas salas de situação governamentais. É preciso ter um PAE (Plano de Ação Emergencial) similar ao exigido para barragens, para as bacias com alto risco de inundações; cadeias de comando, rotas de fuga, protocolos de resgate, organização do voluntariado, definir claramente a função das Forças Armadas e Policiais, definição de pontos de encontro seguros, onde colocar abrigos etc; 4) Dotar o país efetivamente de um sistema de previsão hidrológica e meteorológica de cheias e deslizamentos, ligado a sistemas de avisos e alarmes, com modelos matemáticos cada vez mais aperfeiçoados, baseados em medidas de campo ao abrigo das cheias – radares meteorológicos, pluviômetros, medidores de nível por ultrassom, detectores de movimentos de massa etc.

Eng. Carlos Eduardo Aguiar – Acredito eu que, além do que eu já comentei, o país precise de um planejamento urbano mais racional, uma infraestrutura sustentável; medidas de educação ambiental, que são medidas não estruturais, são extremamente necessárias, muito necessárias. Muita gente ainda não vê o quão importante é a crise climática. Muita gente ainda acha que isso é para o futuro, não, já está acontecendo. Uma avaliação de risco, realizar uma avaliação de risco mais abrangente, específica de cada região. Como eu falei, o Brasil é muito grande, cada região tem sua particularidade. E quando a gente fala de eventos extremos, eles não só inundações, uma chuva muito intensa. Eventos de seca que acontecem aqui na Amazônia, como ano passado, quando nós tivemos a maior seca, o que não acontecia há mais de um século ali no Rio Negro. É extremamente importante a gente avaliar essa condição regional também, porque eventos de seca, também no Nordeste são muito recorrentes, e agora vão ficar ainda mais recorrentes. Desenvolvimento de planos de emergência é essencial agora para cada área ter uma infraestrutura sustentável, resiliente. Uma estrutura que não leve em consideração só aquela questão da engenharia, que é engenharia vai ser o mais viável possível economicamente. Não: tem que ser o mais viável economicamente, socialmente, ambientalmente, certo? Zoneamento de áreas, as áreas mais vulneráveis. E aí a gente entra numa discussão da questão da do racismo climático, que as áreas mais vulneráveis geralmente são onde moram as pessoas com menos condições financeiras. E são justamente essas pessoas que são mais impactadas no pós-evento, no pós transtorno. Elas vão ter muito mais dificuldade de se recuperar, psicologicamente, financeiramente. Então, a gente tem que ter em vista isso. Uma intensificação no orçamento por parte do estado, de dar valor e guardar o dinheiro. E principalmente investir em tentar evitar com o que aconteça, mas se acontecer, ter o orçamento necessário para que possa se repor isso. O importante é evitar, mas se acontecer, a gente tem que ter dinheiro em caixa para poder realizar isso. Os sistemas de alerta de comunicação são muito importantes. A gente vê o que aconteceu, muitas áreas do Rio Grande do Sul ainda estão sem comunicação também. Enfim, é uma coordenação melhor, uma colaboração melhor, não só do ator social ali, mas do poder do estado, da iniciativa privada. É um momento de se unir, não é um momento de a gente estar se separando, divergindo. Esse é o momento em que a gente tem que se unir mesmo.

Eng. Lafayette Dantas – Certamente.  Primeiramente, é necessária sensibilização e vontade política pelos administradores públicos. Devem atuar e fomentar junto à sociedade a consciência e atitudes sobre os riscos de situações extremas e, assim, engajarem-se na preparação. Com esta sensibilização, investir em monitoramento (coleta de dados contínua), análise contínua dos mesmos, identificação de localidades críticas (mapeamento de riscos), criação de planos contemplando a prevenção, a atuação em emergências e mitigação de desastres. Os planos de prevenção, emergência e mitigação devem ser efetivamente utilizados, guiando programas, ações e projetos, bem como orientando as instituições e organizações sociais para atuar nesse sentido, dentro do que lhes compete. Se faz necessário capacitação de pessoal, estruturação institucional e viabilização dos meios operacionais para se atuar na prevenção, na emergência e na mitigação dos efeitos dos eventos. Incorporar em planos diretores de desenvolvimento (urbanos e rurais) as premissas necessárias para uma efetividade na atuação da sociedade (administração e cidadãos), visando à prevenção e adaptação; premissas baseadas em conhecimentos, estudos e cenários prospectivos.

Eng. Sérgio Koide – De fato, é isso, a primeira coisa que gente tem que começar a fazer e urgente é a questão de preservação, principalmente de áreas ainda preservadas, ou seja, não desmatar mais. Eu acho que em algumas áreas ainda há uma certa expansão da fronteira, mas têm que ser escolhidas para evitar isso. Tem uma série de formas e também de agricultura que precisam melhorar; uma coisa que nós temos que repensar claramente é o seguinte: até que ponto, por exemplo, nós temos que ocupar algumas várzeas, principalmente para a agricultura? Isso realmente não é bom. A própria produção de arroz no mundo hoje, dentro da água, é considerada uma das formas de geração de gás metano, é um problema sério. Agora, arroz de sequeiro, que tem aqui em Goiás, esse não é problema. Tem se discutido muito na Ásia, no Sudeste Asiático e em todo mundo que é assim, por alagamento. Os estudos dizem que eles geram gases do efeito estufa, metano, em uma quantidade muito grande.

Engª. Simone Rosa – Evidentemente que sim, pois em várias cidades do Brasil têm ocorrido eventos extremos de chuvas com consequências catastróficas. Aliando o monitoramento hidrometeorológico com sistemas eficientes de controle de cheias, especialmente em áreas vulneráveis e suscetíveis a movimentos de massas. Em relação às barragens, também discute-se a possibilidade de revisão de dados dos eventos hidrológicos considerados no projeto. Mas, sobretudo, adaptando as cidades para convivência com futuros eventos extremos.

Confea – Quando o/a senhor/a iniciou seus estudos e quando os aperfeiçoou no mestrado e doutorado, cogitou esse tipo de condição extrema?

Eng. André Silveira – Eu diria que sim, meu mestrado foi no IPH da UFRGS que é um dos melhores do mundo e lá estas questões de eventos extremos são estudadas corriqueiramente. No doutorado que fiz na França (Université de Montpelloier) me aprofundei na questão da drenagem urbana, mas sem tratar de inundações.

Eng. Carlos Eduardo – Quando eu comecei a estudar essa área de mudanças climáticas com relação à hidrologia, foi uma proposta do meu orientador. Eu já havia trabalhado com fenômenos climáticos, El Niño, La Niña, na minha dissertação, então era uma área que eu já me interessava bastante. E principalmente aqui na Amazônia, a gente vai ser bastante vulnerável com relação a essas mudanças e, em conclusão, principalmente durante a minha tese, eu verifiquei assim que os eventos extremos sempre aconteceram, e sempre vão acontecer. A diferença é que, com as mudanças globais causadas por influência também do homem, esses eventos extremos vão ficar mais recorrentes e muito mais intensos. Não é que eles vão acontecer a partir de agora, eles sempre aconteceram e sempre vão acontecer, porém, eles vão ficar acontecer muito mais vezes, infelizmente, e com muito mais intensidade do que aconteceu há 80, 100 anos atrás. Isso por condições também da temperatura global que a gente tem aí que a temperatura média global já aumentou quase um e meio grau. Isso aí é uma coisa gritante, preocupante, mas também em consequência da urbanização, da impermeabilização do solo, ocupações desordenadas. Isso daí é um conjunto da obra toda que infelizmente está causando esse grande impacto na nossa sociedade.

Eng. Lafayette Dantas – Na ocasião, década de 1990, estas questões não eram evidentes. Ainda emergiam as preocupações ambientais no Brasil de forma mais massiva. As práticas hidrológicas eram ainda bastante baseadas no “princípio da estacionariedade”, ou seja, considerando que os dados climáticos e hidrológicos do passado (as séries históricas) representariam o que deveria acontecer no futuro, ainda que se reconhecesse haver incertezas inerentes devido a variabilidades naturais. A compreensão sobre potenciais mudanças climáticas avançou com o incremento da capacidade computacional, a fim de processamento de grande quantidade de dados, e obviamente as pesquisas na área. Avanços foram também devido às novas tecnologias e sensores para captura de dados e informações, como as imagens de satélite, radares, medições telemétricas e de parâmetros ambientais físicos e químicos diversos. Particularmente, no meu mestrado, foram analisadas situações referentes a ocasiões de estiagem e vazões mínimas em rios, logo não deixava de referir-se a eventos extremos. Porém, como foi dito, de uma forma estacionária. No doutorado, trabalhei com aspectos da variabilidade hidrológica que potencialmente afetariam condições do habitat aquático. A abordagem envolvia estocástica (probabilidades), porém ainda sem incorporar possíveis mudanças climáticas. Hoje, é impensável não se considerar mudanças climáticas nos estudos e pesquisas acadêmicas, muito em função, entre outras coisas, do agravamento dos eventos hidrológicos extremos.

Eng. Sérgio Koide – É, na verdade, é lógico que a gente passa por várias fases, e nessa parte de manejar as propriedades urbanas, eu tenho trabalhado nos últimos 15 anos. A gente está muito preocupado aqui em Brasília, também, não só na quantidade. É a questão da qualidade das águas urbanas. A gente está gerando muito esgoto e esgoto mistura também com as águas fluviais, e as cidades também, você tem uma lavagem da cidade. Então, como Brasília está no topo do planalto, então nós temos, por exemplo, alguns rios que não têm a menor condição de receber aquela carga, mesmo tratando o esgoto. Nós temos aí o famoso Melchior, onde você tem mais de um milhão de pessoas morando numa bacia, num rio que na época de seca não chega a um metro cúbico por segundo. Ou seja, a vazão de esgoto tratado hoje que é lançado no rio é maior que a vazão do rio, então é um rio de esgoto, apesar de ser esgoto tratado. O Paranoá tem recebido muito esgoto também, cada vez mais, mas se você olhar, por exemplo, nós estamos falando de alguns metros também, que chega a ser uma porcentagem significativa da vazão que chega no Paranoá. Nós estamos no período de seca, então todos os rios baixam a sua vazão. Como a gente, além disso, ainda capta a água desses rios que jogam no Paranoá, essas águas são utilizadas nas casas e voltam sob forma de esgoto. As estações de tratamento são muito boas, você remove praticamente toda a matéria orgânica e tal, mas ainda assim é esgoto. Então, a gente vem acompanhando os problemas com a drenagem em Brasília e, apesar de eles serem muito menores, não se justifica, com tanta área verde aqui em Brasília, principalmente no Plano Piloto. Por que no Plano Piloto a gente tem esses problemas quando você tem tantas áreas verdes? Porque as áreas verdes não são utilizadas para fazer essa absorção, então, na verdade, aqui em Brasília, o problema tem solução fácil e nem o custo é tão alto, então algumas obras aqui tem um custo imenso, com o próprio Drenar DF na 1 e 2 (Projeto de drenagem do governo do Distrito Federal que ocupa as quadras comerciais 401 e 402 da Asa Norte). Para resolver o problema se gastou muito dinheiro. Quer dizer que se, ao longo do tempo, se fosse tomando medidas para contenção dessas águas, fazendo soluções baseadas na natureza, infiltrando a água, detendo a água mais para montante, a gente conseguiria resolver melhor. Não é o caso do Rio Grande do Sul porque, como eu falei, é muito baixo. Agora, aqui a gente tem soluções.  Em Brasília, a drenagem tem solução na maior parte dos lugares. Não dá onde o pessoal está morando em áreas realmente sujeitas a problemas como encostas e calhas de rio e também, como diz, em cima de nascentes ou coisas desse tipo que aí vai ter problemas desnecessários. Então, achar a forma de urbanização aqui em Brasília é a coisa mais importante a ser analisada.

Engª. Simone Rosa – Eu sou formada em engenharia há mais de 30 anos e naquela época não se tratava de mudanças climáticas no Brasil como se trata atualmente. Mesmo no doutorado, há cerca de 20 anos, não considerávamos situações de mudanças climáticas. Em geral, a engenharia ainda utiliza as séries históricas de variáveis hidrológicas para análise de frequência dos eventos críticos a serem considerados no dimensionamento das obras hídricas.

Henrique Nunes
Equipe de Comunicação do Confea

Fonte: https://www.confea.org.br/para-ajudar-compreender-tragedia-do-rio-grande-do-sul